As Intermitências da Morte
Em um determinado país, após a virada do ano a morte parou de chegar. O que a princípio parece ser uma benção demonstra ser um grande fardo.
Veremos bem rápido no livro que por mais que exista quem ache que a morte é um mal, na pior das hipóteses todos hão de concordar que ao menos é um mal necessário.
Bem no comecinho do livro, achei interessante que a primeira instituição a demonstrar grande preocupação com a ausência da morte foi a igreja.
"Sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja", alega vossa eminência.
Coincidentemente comecei recentemente a ler um outro livro, "O Valor do Amanhã" de Eduardo Giannetti, que parece concordar com esta visão que Saramago coloca à igreja e sua necessidade de que a morte exista. Giannetti alega que há um contrato implícito nas grandes religiões mundiais: "obediência agora, salvação no porvir". E aí nos perguntamos, se não há morte, quando que a salvação virá?
O principal motivo de eu ter gostado muito de As Intermitências da Morte é como que o autor pega uma situação absurda (ninguém morre) e usa isso como pretexto para desnudar as características humanas e sociais que parecem ser universais e atemporais.
Um dos trechos que mais gostei foi o capítulo onde a máphia (sim, com ph) negocia com o governo a maneira com que continuará a executar suas atividades sem que haja interrupções da polícia. Me pareceu bastante didático o modo como o Saramago abordou a negociação desde o início e foi passo a passo, diálogo por diálogo, mostrando todas as preocupações e estratégias que o governo usa para não agitar a população, nem a mídia, nem os partidos de oposição, e consequentemente se manter no poder. Cargos de fachada, funcionários do governo atuando junto com a máphia, e tudo isso com o dinheiro do contribuinte. Apesar do contexto absurdo do livro (ausência da morte), nota-se que é perfeitamente factível que este mesmo tipo de trama ocorra no mundo real, e nos mais diversos contextos.
Ainda neste mesmo cenário de negociatas entre máphia e governo, Saramago coloca as forças armadas na história e mostra como que toda essa rede de corrupção quase que desencadeia um golpe militar.
Podemos dizer que o livro é dividido em duas partes. Na primeira, sobre a ausência da morte e as consequências disto nos diversos setores da sociedade daquele país, não há um personagem principal definido. Na segunda parte a própria morte vira o personagem principal, e é interessante vê-la se humanizando. Aqui a história fica de certa forma mais leve e descontraída.
Melhor evitar falar mais para evitar spoilers. :)
Sobre a técnica do Saramago de usar parágrafos enormes e separar os diálogos por vírgulas, achei uma via de mão dupla. Por um lado achei legal pois me forçou a ter atenção na leitura para conseguir compreender os diálogos, mas por outro lado achei que isso pode afastar leitores iniciantes ou menos persistentes. Digo isso pois eu costumo tentar estimular a leitura entre amigos que não possuem este hábito. E mesmo tendo gostado muito de As Intermitências da Morte e de tudo que é dito, este não é exatamente um livro eu recomendaria para quem ainda não é um leitor "calejado".
Curiosidade: existe um filme onde ocorre o oposto do que acontece no livro: ninguém nasce. O filme chama-se "Filhos da Esperança" e está no catálogo do Netflix. Assisti apenas o trailer e fiquei bastante interessado.